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sexta-feira, 23 de março de 2012

CASO CLÍNICO DE ST, DESCRITO POR UM PSIQUIATRA

O Jornal Brasileiro da Psiquiatria, editado pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, descreveu um caso de adolescente com sintomas de síndrome de Tourette e TDAH. Embora longa, recomendamos ler a descrição do psiquiatra. Alertamos, entretanto, que a linguagem é voltada para médicos.

A., masculino, 12 anos, brasileiro, negro, natural do Rio de Janeiro, cursando a 4ª série do ensino fundamental.

Resumo do caso: Síndrome de Gilles de la Tourette associada ao transtorno de déficit de atenção com hiperatividade: resposta clínica satisfatória a inibidor seletivo da recaptura de serotonina e metilfenidato

Nascido a termo, de parto cesáreo em virtude de eclampsia, apresentou desenvolvimento neuropsicomotor sem alterações. A mãe refere que, quando bebê, ele era calmo. Contudo, desde os 3 anos de idade, passou a apresentar comportamento hiperativo. Na escola, ficava muito agitado, batendo e mordendo os colegas. Em casa, ele gostava de assistir a desenhos animados na televisão, mas "levantava o tempo todo, não parava quieto".

Aos 7 anos, na 1ª série do ensino fundamental, as professoras passaram a relatar manifestações de déficit de atenção: "ele vivia desligado" e não interagia. A família buscou atendimento neuropsiquiátrico em outra instituição. Foram prescritos risperidona e ácido valproico. A mãe não percebeu melhora. A seguir, introduziu-se carbamazepina, "que o deixava bobo". Foi reprovado na escola.

No ano seguinte (aos 8 anos), continuava com a medicação prévia e foi associada fluoxetina, sem sucesso. Apresentou ganho de peso significativo, pois "comia compulsivamente". Ainda nessa época, passou a exibir tique motor, "piscar demais os olhos" e algum tempo depois a apresentar tiques vocais manifestados como "pigarros", que é como a mãe chamava os ruídos que o paciente emitia como se estivesse "limpando ou aliviando uma comichão na garganta". Essas vocalizações ocorriam numa frequência semelhante e, por vezes, acompanhando o abrir e fechar rítmico das pálpebras.

A mãe informa que alguns meses depois iniciaram as compulsões: quando caminhava, "parecia que estava medindo tudo, colocava um pé atrás do outro". Além disso, "se abrisse a porta, tinha que fazer isso várias vezes" e, ao assistir a desenhos animados, passou a repetir a fala de todos os personagens, de todos os exames. Foi possível observar alguns desses fenômenos no primeiro exame.

Foi encaminhado ao Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG) para avaliação diagnóstica e conduta terapêutica (aos 9 anos, na 2ª série). Na ocasião, estava em uso de carbamazepina 100 mg/dia, ácido valproico 1,5 g/dia, risperidona 1 mg/dia e fluoxetina 20 mg/dia. Durante a consulta, apresentava hiperatividade, mostrando-se bastante inquieto, andando pela sala, manuseando os objetos à sua frente, como o carimbo do médico.

Apresentava prejuízo significativo no desempenho escolar e social. O paciente exibia comportamento impulsivo. Relata que os colegas de escola chamavam-no de esquisito e, às vezes, ele "não aguentava e batia neles". Segundo a mãe, as brigas eram semanais e ela encontrava-se bastante preocupada, pois A. estudava com bolsa em uma escola particular. Ela temia que ele perdesse o benefício por causa do mau comportamento e do baixo rendimento escolar.

Foram diagnosticados transtorno de Tourette, transtorno obsessivo-compulsivo e transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, tipo combinado, segundo os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR. A conduta consistiu em aumentar a fluoxetina para 30 mg/dia. Houve melhora rápida da irritabilidade (duas semanas) e gradual das compulsões e tiques (dois meses), confirmada pela professora. A risperidona foi, então, suspensa e iniciou-se a redução gradual da dose de carbamazepina e ácido valproico, até sua retirada completa.

Contudo, a hiperatividade e a impulsividade eventuais persistiam com prejuízo escolar. Iniciou-se, então, metilfenidato 10 mg/dia pela manhã, que era seu turno na escola. Segundo a mãe, após aproximadamente sete dias a concentração dele aumentou, assim como a tranquilidade. A professora informou que A. passou a copiar a matéria no caderno e a prestar atenção às aulas.

A mãe relatou que com o tratamento A. passou a comer menos e "as repetições diminuíram". Houve redução "no piscar dos olhos", vocalizações e "mania de pisar com um pé na frente do outro". Cessaram os comentários sobre os tiques na escola. "Pararam de chamá-lo de esquisito", diz a mãe.

Com a introdução do metilfenidato, apresentou redução acentuada da hiperatividade, refletindo-se em melhora da coordenação e psicomotricidade, a qual pode ser observada por meio da mudança na caligrafia do paciente. Além disso, o desenvolvimento da atenção voluntária levou à melhora significativa em seu desempenho escolar. No ano em que iniciou o tratamento no HUGG, ficou entre os 10 melhores alunos da turma. O controle dos tiques motores e vocais possibilitou melhor relacionamento interpessoal. Após a suspensão da risperidona, carbamazepina e ácido valproico e início de uso do metilfenidato, houve redução de 10 kg de massa corporal em um ano, atingindo a faixa de peso esperada para sua altura.

O paciente é acompanhado no serviço há dois anos, não tendo sido necessário aumento de dose das medicações nesse período.

Discussão

Trata-se de um caso característico de SGT. Os sintomas de TDAH precedem os tiques motores, os quais, usualmente, se manifestam antes das vocalizações. Os sintomas compulsivos surgiram por último. A coprolalia, tida como típica do transtorno, ocorre em menos de um terço dos casos, não sendo observada no caso relatado.

Muitas vezes, torna-se difícil diferenciar TOC de sintomas obsessivo-compulsivos integrantes da SGT. Contudo, é sugerido que rituais de lavagem e checagem são mais frequentes em pacientes com TOC, enquanto pacientes com SGT exibem mais comumente compulsões de tocar, contar, piscar, sendo, dessa forma, vistas por muitos como tiques complexos.

No caso descrito, o paciente não apresentou piora dos tiques com o uso do metilfenidato, beneficiando-se da melhora no quadro de TDAH. Além disso, a fluoxetina levou à redução não apenas dos sintomas compulsivos, mas também, possivelmente, dos tiques. Uma vez que o paciente continuou sendo acompanhado no serviço, mantendo a melhora observada há dois anos, acredita-se que esse fato não seja apenas uma oscilação espontânea da intensidade dos sintomas, decorrente da evolução da doença, mas sim efeito da medicação.

Embora alguns ensaios clínicos tenham evidenciado ausência de efeito ou pouco efeito da fluoxetina nos tiques, relatos de casos, bem como a nossa experiência clínica, vêm demonstrando bons resultados. Uma hipótese neuroquímica para isso seria a deficiência de serotonina e seus metabólitos, observada em alguns estudos.

Kurlan et al. avaliaram 11 crianças com SGT em uso de haloperidol ou clonidina, ao qual foi adicionado, randomicamente, fluoxetina (20-40 mg/dia) ou placebo. Os pacientes relataram melhora na intensidade e capacidade de supressão dos tiques com a adição de fluoxetina, sugerindo algum efeito potencial dos ISRS no tratamento de tiques.

Convém ressaltar que o ensaio clínico conduzido por Scahill envolveu apenas 14 pacientes e a dose de fluoxetina foi estabelecida em 20 mg/dia, sem possibilidade de aumento12. Dessa forma, o baixo poder do estudo (em virtude do pequeno tamanho amostral), bem como a baixa dose administrada de fluoxetina, pode ter sido responsável pela ausência de resposta dos tiques.

Conclusão

O paciente descrito foi manejado satisfatoriamente apenas com ISRS e metilfenidato, sem necessidade de uso de bloqueadores dopaminérgicos para controle dos tiques da SGT.

Se confirmada a eficácia dos ISRS no manejo dos tiques, estes constituirão uma alternativa terapêutica vantajosa, dado o perfil de eventos adversos mais favorável, possibilitando melhor qualidade de vida dos pacientes.

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